Os maiores problemas da anarquia

Eu busco nesse texto apontar os maiores problemas de um sistema anárquico. Argumentos que dizem respeito a uma suposta ‘ética’ que valida esse sistema são abordados em outras ocasiões.

Para fazer minha crítica à anarquia, é antes oportuno definir os termos.

Anarquia é ausência de Estado, e eu concordo com a definição de Estado do anarco-capitalista Hans-Hermann Hoppe, em seu livro Democracia, o Deus que Falhou. Segundo ele, o Estado é:

o monopólio territorial da decisão final obrigatória (jurisdição)“, ou

a empresa monopolista da decisão final – i.e., o árbitro final (juiz) em cada caso de conflito interpessoal.

Ele mesmo defende a ideia de “uma ordem natural de árbitros, juízes e jurisdições sobrepostos e concorrentes (não monopolistas) e livremente (voluntariamente) financiados.

O que também pode ser considerado um tipo de anarquia, i.e, ausência de Estado.

Características da anarquia

Então vamos aos pontos essenciais. Imaginemos uma sociedade anárquica ou anarcocapitalista.

Uma característica essencial desse tipo de sociedade é que não há uma pessoa ou grupo que possui a decisão última sobre o uso da força. Não existe um arbitrador último na sociedade, mas apenas juízes escolhidos diretamente pelas próprias pessoas.

Mesmo que alguém possa se juntar em algum grupo de defesa, tribunal ou coisa do tipo, em última instância a decisão não está em nenhum desses grupos, mas no próprio indivíduo, autônomo, que não possui, ao nascer, qualquer obrigação com qualquer outra pessoa na sociedade.

O ato de se juntar a essas organizações é voluntário; e em última instância, quem decide se algum ato dessas organizações é legítimo ou não é ninguém menos do que o próprio indivíduo. Isso ocorre porque, se ele, por vontade própria, considerar algo ilegítimo nessas organizações, não haverá um terceiro arbitrador que compelirá ele ou essa organização a aceitar algo; e não se poderia afirmar a priori quem está certo ou quem está errado, pois para isso se necessitaria de um terceiro juiz.

Então fica claro que numa sociedade anarquista, em última instância, é sempre o indivíduo o julgador em sua própria causa. Ele não possui qualquer obrigação com ninguém ao nascer, e não haverá nenhuma estrutura que, antes de tudo, dirá que o que faz é certo ou errado.

Isso naturalmente é o maior significado de anarquia: de que o indivíduo é em última instância autônomo, de que não há um monopólio de decisões, ou de que não há um monopólio no uso da força.

Problemas da anarquia

Em uma anarquia, há muitos problemas. A maioria deles decorre do fato de que a decisão última em qualquer conflito estará, de uma forma ou de outra, nas mãos dos próprios conflitantes, não de terceiros.

É importante enfatizar mais alguns pontos:

Se as pessoas fossem sempre boazinhas e respeitassem o direito e a propriedade dos outros, não haveria tantos problemas na anarquia.

Se as pessoas de forma em geral não buscassem seu próprio interesse mais do que o interesse de outras pessoas, também não haveria tanto problema na anarquia.

Um importante problema da anarquia é que sempre haverá conflitos que, dependendo de como serão resolvidos, prejudicarão muito alguma parte conflitante. Então será sempre do interesse de alguma dessas partes não deixar perder esse conflito de forma alguma. Por exemplo: a pena para alguma coisa que alguém fez poderá ser cadeia por 5 ou 10 anos. Isso nem é tanto comparado às punições que podem acontecer, mas muita gente faria de tudo para se livrar desse tipo de punição. Para algumas pessoas isso significa quase a morte, e elas farão do bem ou do mal para não se sujeitar a esse tipo de coisa.

As pessoas nesse tipo de sociedade são ao mesmo tempo os juízes e os executores da lei, pois são elas em última instância que decidem sobre seus próprios conflitos. Mesmo que seja alguma agência que está julgando, esta possui autoridade apenas enquanto o indivíduo a aceita, como eu mostrei antes.

Então isso torna esse sistema muito mais sujeito a parcialidades, paixões, vinganças do que em um sistema estatal. Mesmo que possa haver parcialidade, paixões e vinganças em um sistema estatal, essa não é a base do sistema, como na anarquia, pois nesta, em última instância as pessoas julgam em causa própria. Em um sistema estatal, ou com autoridade política, por outro lado, quem julga não precisa ser aceito voluntariamente por alguma das partes envolvidas em um conflito.

É como a diferença entre um sistema socialista e de propriedade: por mais que queremos, em um sistema socialista, que ele se descentralize, ele só deixará de ser socialista se a decisão última sobre o uso dos meios de produção esteja entre os diversos donos de propriedade. Você pode inventar vários sistemas socialistas, mas a questão sempre vai ser: o uso último está entre os donos dos meios de produção? Se não, o sistema está sujeito a todos os problemas apontados pelos críticos do socialismo na questão econômica.

Em uma anarquia, ela é anarquia porque, em última instância, a decisão última sobre um conflito está entre as partes conflitantes. Apenas desse fato já se deduz que, nesse sistema, há uma inerente parcialidade nas decisões, que não precisa existir em um sistema estatal.

Em um sistema com Estado, o juiz é um funcionário do Estado, e está encarregado de obedecer às ordens e cumprir as leis do Estado, inclusive sendo pago também pelo Estado. Ele é uma parte independente do caso. Claro que ele pode se tornar parcial para um dos lados, mas a estrutura do sistema torna isso muito mais difícil do que em uma anarquia.

Outro ponto que pode ocorrer devido às pessoas julgarem em causa própria é a deturpação da lei. Mesmo que supomos que entre as pessoas há um senso difuso de justiça, mais ou menos igual entre todos, conflitos são conflitos justamente pelo desacordo sobre certas questões. O instinto da auto-preservação, o medo de alguma pena, geralmente fala mais alto que nosso senso de justiça (inclusive, se esse senso de justiça fosse suficiente, não haveria algo como um crime). Então o mesmo princípio que faz com que algumas pessoas cometam crimes para beneficiar a si em detrimento da sociedade faz com que elas ignorem esse senso de justiça, e julguem de forma tendenciosa. Afinal, elas estão julgando seus casos particulares; é difícil pensar que agiriam diferente.

O auto-interesse torna muito difícil que as pessoas sigam algum tipo de ética libertária, tanto se restringindo a violar suas supostas ‘leis’, quanto no julgamento e punição em relação a elas. É basicamente uma utopia pensar que todas as pessoas irão seguir, em qualquer um desses casos, um tipo de ética libertária. As pessoas têm pensamentos, personalidades, etc, diferentes. Basta também olhar para a história para ver se a humanidade seguiu algo desse tipo; e o quanto seria improvável ela seguir agora.

Eu havia dito que: ‘se as pessoas fossem sempre boazinhas e respeitassem o direito e a propriedade dos outros, não haveria tantos problemas na anarquia’. Porém, mesmo supondo que as pessoas no geral seguiriam algum tipo de ética libertária (o que, creio, já seria uma utopia), haveria inúmeros problemas devido ao conteúdo concreto dessa ética. Aprioristicamente, a ética libertária não define muitos problemas concretos. Por exemplo, qual é o tamanho e intensidade da pena? Se alguém apenas toca em sua propriedade com um dedo, por que eu não poderia puni-la? Um avião passando nos céus de sua propriedade a viola? E quanto a alguém com um drone?

Podem parecer tolas essas questões, mas o problema não é tanto elas em si, mas o fato de elas estarem associadas a pessoas julgando em causa própria. A possibilidade das pessoas usarem esses ‘gaps’ da ética libertária para beneficiarem a si é enorme. E ninguém poderia dizer muita coisa para elas, pois não há respostas definitivas para essas questões. Creio que uma das mais importantes coisas que seriam usadas assim seria a distorção do tamanho e intensidade das penas para benefício próprio ou para vingança.

Mesmo entre os libertários também existem inúmeras questões, até mesmo essenciais, da ética que eles também não sabem como aplicariam. Basta imaginar isso em uma sociedade na qual essas questões muitas vezes significam vida ou morte. E basta aplicar isso para milhares, ou milhões de pessoas, e imaginar o problema que daria.

Outra questão, e não menos importante, é que faltaria poder para apoiar e manter a sentença quando ela é justa, assim como para impor sua devida execução. Não haveria uma força maior, que teria a autoridade última de julgar ou executar os casos. O uso da força estaria distribuído entre a sociedade (até por que não há monopólio no uso da força). O executivo estaria fundido ao judiciário e também ao legislativo. Mesmo quando parece que alguma sentença é justa, como as pessoas julgam em causa própria e buscam de tudo para não sofrerem muitos prejuízos, pode ser que aquele que está do lado certo da questão não possui tanta força para aplicar sua sentença. Já o que estaria errado poderia possuir mais força. Esse desequilíbrio entre as forças colaboraria mais ainda para a parcialidade no julgamento, ou até para desvirtuá-lo completamente.

Poderia inclusive haver muita coerção, chantagem ou coisas do tipo, do lado de quem possui a força, contra aquele que não possui, de forma a desvirtuar o julgamento completamente.

Num sistema estatal, ainda pode haver coisas do tipo. Mas o sistema não tem por sua base esse tipo de coisa. Numa sociedade com Estado, os juízes e funcionários são pagos por ele, que é o braço armado mais forte da comunidade; e esses juízes são encarregados de julgar com base nas diretrizes que o Estado coloca. Numa sociedade anarquista, os juízes e funcionários são, em última instância, as próprias pessoas conflitantes, dependentes de seu dinheiro ou de suas ordens, e o desequilíbrio de poderes no caso será crucial, pois é ele que define os meios de julgamento e execução das próprias pessoas conflitantes. E esses meios são essenciais para que a justiça seja feita.

No Estado, temos uma agência mais ou menos aceita e conhecida pela população. As regras tendem a visar a essa população como um todo. Seus meios, suas leis, estão diretamente ligados à opinião dessa população como um todo. Da forma que Hoppe gosta de falar, citando Hume, Jouvenel e Mises: todo poder, no sentido de Estado, se baseia, em última instância, na opinião.

Por outro lado, numa anarquia, a ação de agências ou de pessoas nesse sistema não estarão diretamente ligadas à opinião da população. Serão várias agências agindo em um dado território; seus meios serão desvinculados da população como um todo. Sem dúvidas o Estado, como agência única nesse território, tem maior tendência de refletir a opinião e ter certo controle da população do que a ação dessas agências particulares e independentes.

Com todos esses problemas acima, ainda restaria um levantado por Mises, ‘das crianças, dos velhos e dos loucos’ e dos indigentes. Basicamente, pessoas que muitas vezes precisam de cuidado, que não conseguem muito bem se virar sozinhas, que não têm tantos meios para se defenderem. Em uma anarquia, nada inerente ao sistema tenderá a defender essas pessoas. Elas dependerão em última instância da caridade e da boa vontade dos outros. A parcialidade, as paixões e abusos podem ser muito maiores em relação a elas, pois a assimetria do poder, o julgamento em causa própria nesse sistema são muito maiores do que em um sistema em que o responsável pela força e justiça é um terceiro independente. Quanto mais fraca e mais pobre é a pessoa, mais ela tenderá a ser prejudicada nesse tipo de sistema em que a força e a riqueza têm nele uma importância inerente e essencial.

A sociedade e as pessoas não funcionam da forma que um teórico planeja, ou quer que elas se comportem. Eu posso ler um livro de Rousseau sobre como o homem é bom e sair para a rua e me surpreender com um bando de mala que busca me roubar. Os problemas que acabei de citar, em qualquer sociedade, são enormes. Causariam caos e instabilidade em qualquer lugar em que eles fossem aplicados. Embora para alguns eles não possam parecer tão importantes assim, na realidade as pessoas saberão muito usá-los em causa própria. A consequência disso é que um sistema anárquico estará muito longe de obedecer alguma lei estabelecida, e ter relativa estabilidade e paz. Seria basicamente o oposto disso: obedecer algum tipo de lei e manter algum tipo de ordem serão incompatíveis com um sistema anarquista.

A tendência, após se ‘colocar em prática’ esse tipo de sistema é que as pessoas formarão pequenos ‘clubes’ em certos territórios e passariam a viver junto de pessoas com quem conhecem. Fora desses territórios ou ‘clubes’, haverá bastante medo e insegurança. Com pessoas com quem se conhece é mais fácil imaginar a forma como agirão, o que vão fazer, e que não irão cometer algum tipo de crime. Dentro desses territórios, haverá mais ou menos uma lei estabelecida. Fora desses territórios, as pessoas ainda poderão se relacionar, mas essas relações serão raras e geralmente com pessoas que também se conhece. A facilidade com que um grupo forte e armado poderá usar de todos esses problemas descritos da anarquia fará com que seja extremamente perigoso sair desses territórios. A sociedade tenderá a se desintegrar nesses pequenos grupos e a divisão do trabalho irá se declinar. Hume, em um de seus 6 volumes sobre A História da Inglaterra, mostra isso muito bem:

O homem deve se guardar, a qualquer preço, contra insultos e injúrias; e quando ele não recebe qualquer proteção das leis do magistrado, ele irá buscar submissão a superiores e se reunir em alguma aliança privada, que age sob a direção de algum líder poderoso.” David Hume, The History of England

Além desses problemas, há o problema da defesa nacional, que falarei apenas brevemente. Em uma sociedade anarquista, poder-se-ia pensar que a defesa nacional é desnecessária porque não haveria nenhuma fonte de poder para invadir ou tomar, o que tornaria difícil algum país ou grupo, com um exército organizado, invadi-la. Porém, quando se pensa assim, se esquece de que um exército organizado pode pilhar as propriedades, casas, tomar as mulheres e as crianças de pessoas particulares. Isso é um atrativo e tanto para muitas pessoas. E sem esse poder concentrado para defender as fronteiras da região, o saque de pessoas e propriedades particulares será facilitado.

Ilustrações históricas

Pelas razões descritas acima haveria a formação desses tipos de clubes, nos quais haveria segurança interna e externa, e que seriam mini-Estados. A história corrobora com isso, pois foi exatamente o que ocorreu no feudalismo. Logo seguido à queda do Império Romano, talvez a sociedade teve a maior possibilidade de observar, na prática, o que acontece em uma anarquia. O que vimos foi que as pessoas tenderam a se fixar em certos feudos, com proteção interna e externa, e, entre esses feudos, a divisão do trabalho se declinou. Guerras e disputas entre os feudos eram constantes, o que tornava o ambiente fora deles inseguro e instável. Essa insegurança e instabilidade foi a responsável pelo declínio da divisão do trabalho em larga escala, e, para qualquer um que entende as ideias de Mises ou David Ricardo, isso significa que a riqueza e a população também declinou. O próprio Mises mostra isso:

O declínio do mundo antigo, por exemplo, foi um retrocesso social. O declínio do Império Romano foi apenas o resultado da desintegração do mundo antigo que, depois de alcançar um alto nível de divisão do trabalho, afundou-se em uma economia quase sem moeda. (…) A morte de uma nação é um retrocesso social, o declínio da divisão do trabalho para auto-suficiência. O organismo social se desintegra em células nas quais ele começou. O homem fica, mas a sociedade morre.” Ludwig von Mises, Socialism

Em cada um desses feudos, podemos dizer que havia mini-Estados. Havia taxas cobradas pelo senhor feudal, como corveia ou banalidades, e esse senhor também era responsável, direta ou indiretamente, pela resolução de conflitos dentro desses territórios. O grande problema mesmo era fora desses territórios, em que muitas vezes havia a ausência de um Estado ou um rei para decidir disputas entre os feudos. Herbert Spencer ilustra de forma magistral a necessidade de um Estado entre as pessoas e entre esses feudos:

Não apenas aquele primeiro passo na organização política que coloca os indivíduos sob o controle de um chefe tribal traz vantagens ganhas por uma melhor cooperação; mas tais vantagens são aumentadas quando líderes políticos menores se sujeitam a um líder político maior. Para tipificar os males que assim são evitados, eu posso nomear o fato de que entre os Beloochees, cujas tribos, insubordinadas a um governador geral, estão constantemente em guerra umas com a outras, sendo um hábito erguer uma pequena torre de barro em cada campo, onde o possuidor e seus retentores guardam sua produção: estado de coisas semelhante a, mas pior do que, o dos clãs das Highland, com suas fortalezas para proteger mulheres e gado das invasões de seus vizinhos, em dias nos quais eles não estão sob o controle do poder central. O quanto o avanço da estrutura política que une comunidades menores em comunidades maiores aumenta o bem-estar, foi mostrado em nosso próprio país quando, pelas conquistas dos Romanos, as batalhas incessantes entre tribos foram interrompidas; e de novo, nos últimos dias, quando nobres feudais, tornando-se sujeitos aos monarcas, acabaram com suas guerras privadas. Sob seu aspecto oposto, a mesma verdade foi ilustrada quando, em meio à anarquia que se seguiu ao colapso do Império Carolíngio, duques e condes, reconquistando sua independência, tornaram-se inimigos ativos um do outro: sendo seu estado tal que “quando eles não estavam em guerra, viviam de pilhagens.” E a história da Europa tem repetidamente, em muitos lugares e tempos, fornecido ilustrações similares.  Enquanto a organização política, estendendo-se através das massas cada vez maiores, diretamente avança seu bem-estar ao remover aquele impedimento da cooperação que os antagonismos dos indivíduos e tribos causam, ela indiretamente o avança de outra forma. Nada além de uma divisão do trabalho rudimentar pode surgir em um pequeno grupo.” Herbert Spencer, The Principles of Sociology, vol. 2 (1898) [1876]

Então a anarquia entre os indivíduos autônomos já é bastante ruim e causa muito caos. Tal coisa é resolvida pela existência desses pequenos estados em pequenos territórios, como os feudos da Idade Média. Mas esses pequenos estados ainda são muito pequenos e existem em grande quantidade. Dessa forma, a relação entre eles acaba também sendo algum tipo de anarquia, com problemas similares aos de indivíduos sem Estado (embora ainda bem menores). Há a necessidade também de um rei como autoridade última para resolver esses conflitos. Mesmo hoje, com apenas em torno de 200 estados em todo o globo, há muitos conflitos extremamente problemáticos entre os países, sobre os quais não se sabe exatamente quem está certo ou errado e que são intermináveis. Não estou dizendo que seja necessário um Estado mundial, pois existem também outros fatores, como geopolíticos, que entram na questão. Mas é importante pensar em quanto realmente seria problemático, se cada indivíduo, de milhares, milhões e até bilhões de pessoas, tivesse sua autoridade última de decisão em questões de justiça! Seria o caos total. Não é à toa que sempre que a sociedade entrou em anarquia houve, primeiro a formação de pequenos estados; e depois a formação de estados um pouco maiores para resolver conflitos entre esses diversos pequenos estados.

Na Idade Média, a própria necessidade do rei era vista como derivada da lei. E isso é essencial nesse texto: o maior problema da anarquia é quanto à aplicação da lei, que, em vez de estar nas mãos de monopolistas ou de uma autoridade última, está, em última instância, nas mãos de quem são os próprios conflitantes. A autoridade política surge da necessidade de se ver a lei aplicada. Esses problemas já tinham sido notados por Burke, que diz:

Um dos primeiros motivos para sociedade civil, e que se torna uma de suas regras fundamentais, é que nenhum homem deveria ser juiz em sua causa própria. Por isto cada pessoa tem instantaneamente desapossado-se do primeiro direito fundamental do homem despactuado, isto é, julgar por ele mesmo, e assertar sua própria causa. Ele abdica todo direito de ser seu próprio governante. Ele inclusivamente, em uma grande medida, abandona o direito de auto-defesa, a primeira lei da natureza. Homens não podem desfrutar os direitos de um estado incivil e de um civil juntos.” Edmund Burke, Reflexões sobre a Revolução na França

A necessidade de aplicar a lei vem da necessidade da própria lei. Sem aplicação da lei, não há lei ou justiça. Há então a necessidade de uma autoridade para garantir a aplicação dessa lei. Como diz Hume, em seu excelente ensaio chamado Of the Origin of Government:

“Em uma palavra, a OBEDIÊNCIA é o novo dever que deve ser inventado para suportar aquele da JUSTIÇA.”

E isso é exatamente o que aconteceu na Idade Média para existir um rei. Havia um extremo respeito pela lei na Idade Média, e a autoridade do rei era entendida como vinda da necessidade da própria lei. Justamente porque apenas dessa forma se remedia os problemas da anarquia, em que, embora possa haver uma ‘lei’ mais ou menos aceita, ela é incapaz ou extremamente problemática de ser aplicada:

Na Idade Média, portanto, a lei é primária, e o Estado é secundário. Em outras palavras, o Estado é apenas um instrumento para colocar a lei em prática; sua própria existência deriva da lei, que lhe é superior.” Fritz Kern, Kingship and Law in the Middle Ages

De fato havia, na Idade Média, tanto a autoridade do senhor feudal, quanto a autoridade maior do rei. Tomás de Aquino, em meados de 1200, em sua obra De Regno, já dizia:

Se, portanto, é natural para um homem viver em companhia de outros, é necessário haver algum meio pelo qual tal comunidade de homens possa ser governada. Já que, se muitos homens fossem viver juntos a cada um fornecendo apenas o que lhe é conveniente, a comunidade se quebraria em várias partes a não ser que um deles tenha responsabilidade pelo bem da comunidade como um todo.

Origem e desenvolvimento do Estado

Rothbard, em seu livro A Anatomia do Estado, expressou desacordo a essa tese da relação inerente entre a autoridade e a sociedade. Segundo ele, a autoridade surgiu da conquista de muitos indivíduos por poucos. Porém, seu próprio discípulo, Hoppe, discorda. Segundo Hoppe, no artigo As Elites Naturais, os Intelectuais e o Estado,

(…) esta visão sofre do problema teórico de que essa conquista em si parece pressupor a existência, dentre os conquistadores, de uma organização semelhante a um estado. Consequentemente, a origem exógena dos estados requer uma teoria mais fundamentada sobre as origens endógenas do estado. Tal teoria foi apresentada por Bertrand de Jouvenel.

O próprio Bertrand de Jouvenel, que ironicamente também foi citado por Rothbard em A Anatomia do Estado, nos mostra muito bem essa teoria da origem endógena do Estado em sua excelente obra Sovereignty: An Inquiry into the Political Good. Segundo ele, “a autoridade é a criadora do nexo social, e sua posição é consolidada pelos benefícios que surgem do nexo social.” Alguns indivíduos aspiram confiança entre as pessoas e se transformam em autoridade, possibilitando que essas pessoas convivam de forma pacífica. Ele rejeita que o Estado surja por meio de um contrato entre todos os indivíduos, e também por meio da conquista, postura essa que ele chama de ‘cínica’.

Essa autoridade mantenedora da ordem é a origem da soberania e de qualquer autoridade política. Segundo ele novamente:

A forma de autoridade chamada rex aparece, assim, como universalmente necessária para assegurar a confiança e superar as fricções. Essa forma de autoridade é, em nosso juízo, a primeira fonte de soberania. O rex impõe limites, garante os compromissos e resolve os conflitos.

Hoppe, porém, no mesmo artigo, erra ao dizer que existiu um momento a partir do qual essa autoridade última foi monopolizada na resolução dos conflitos, como se essa autoridade se baseasse no consentimento voluntário de todos os indivíduos, e fosse corrompida pelo que ele chama de ‘pecado original’ da monopolização. Jouvenel mostra aqui como isto está errado:

A capacidade para cometer abusos de uma autoridade em relação a seus adeptos, se baseia inteiramente e exclusivamente nos benefícios essenciais do agregado. Esses benefícios são a causa de sua subsistência. Daí que se segue a moral política natural.

Apenas depois de estabelecida essa autoridade política se pode falar da origem do Estado pela conquista (exógena).

De fato a autoridade política, em seus primórdios, se baseava mais na confiança que ela tinha frente aos indivíduos da sociedade, e se mantinha em grande medida com base nesta confiança. A sociedade era pequena, homogênea, e o que predominava eram laços personalistas (é o caso em que vemos de tribos indígenas, em que os pagés possuem autoridade, por exemplo). Embora mesmo aqui não havia voluntarismo, quanto mais a sociedade foi crescendo, menos predominava essa autoridade personalista.

Existem algumas sociedades que os anarcocapitalistas costumam citar como modelos de seu sistema. A Islândia medieval, por exemplo, por causa de ser uma ilha protegida pelo mar e sem necessidade de desenvolver um aparato centralizado de defesa nacional, tinha um Estado que se diferia mais de nosso Estado moderno que a grande maioria. Entretanto, se for analisar seu sistema, se perceberá facilmente que ela também está longe de ser uma anarquia, e que de fato possuia um tipo de Estado ou autoridade política.

Como a maioria das sociedades que eles citam, a Islândia também não possuía uma população maior do que uma pequena cidade. E talvez se pode dizer que, embora em basicamente todo tipo de sociedade há a necessidade de autoridade política, quanto mais a sociedade cresce e mais complexa se torna, mais o aparato estatal é necessário para manter a coesão social. Uma das razões disso é que falta aquele elemento personalista que bastante facilitava essa coesão. Como diz novamente Jouvenel, no mesmo excelente livro:

Desde talvez dezenas de milhares de anos, os homens experimentaram uma correlação entre o funcionamento das autoridades políticas e o bem-estar do grupo. (…) 

Vê-se imediatamente que em uma sociedade muito evoluída, muito complexa como a nossa, o papel da autoridade conservadora é, por sua vez, inteiramente essencial e muito delicado. É essencial porque quanto mais os homens dependem uns dos outros, mais a regularidade do outro lhe é indispensável. (…)

Em primeiro lugar, em uma sociedade organizada, o Estado necessita ser uma autoridade suprema que seja indiscutível. Autoridade que una seus súditos em caso de perigo exterior e que decida e apazigue as disputas interiores. Miserável, desgraçado e arruinado é o país em que falta essa autoridade.

Principal problema político e conclusão

O grande problema político, porém, que Jouvenel aponta por todo seu livro, é sobre as limitações da autoridade soberana. Antigamente, o que ela decidia tendia a se coincidir com os princípios morais do povo. E ela era considerada uma autoridade soberana apenas enquanto suas ações, de forma geral, coincidiam com esses princípios morais. Quando ela decretava uma lei que iria completamente ao contrário desses princípios, ela costumava perder sua legitimidade perante o povo. (Isso não significa que ela não era soberana; mas sim que sua soberania em última instância se baseava nesses princípios que a limitava. Não é porque qualquer zé mané discorda da decisão do rei que a decisão do rei se torna ilegítima). Com o surgimento do Estado moderno, este passou a ser mais frio, a considerar como se tudo que ele decretasse fosse legítimo apenas porque foi decretado por ele.

Então é a limitação desses poderes do Estado, o fim desse absolutismo estatal, que devemos buscar, e não o fim do Estado. Temos que entender que tanto o soberano quanto o povo têm direitos e deveres. Devemos estar atentos ao fato de que, como Mises disse após criticar a anarquia:

“O principal problema político é como prevenir o poder policial de se tornar tirano. Esse é o significado de todas as batalhas por liberdade.” (The Ultimate Foundation of Economic Science)

E, por fim, é oportuno ouvir as palavras de John Locke, que em grande parte serviu de base para minhas críticas à anarquia (principalmente na p. 69 de seu Segundo Tratado). Locke diz:

Seja quem for, governante ou súdito, que tente pela força invadir os direitos do príncipe ou do povo e determinar a base para a derrubada da constituição e da estrutura de qualquer governo justo, ele é altamente culpado do maior crime de que um homem é capaz, e deve responder por todos os males do sangue derramado, da rapina e da desolação que o destroçamento de um governo traz para um país.” John Locke, Segundo Tratado sobre o Governo Civil

10 comentários sobre “Os maiores problemas da anarquia

  1. Sugestão para artigo: Anålise da obra-prima de H. L. A. Hart, The Concept of Law, especialmente no capítulo 5, que refuta a teoria austiniana da lei – segundo a qual, a Lei é nada mais que violência. Tal teoria de John Austin influencia os anarquistas.

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