Argumento de Rothbard Para os Direitos Naturais: Uma Crítica

A lei natural e os direitos naturais foram tradicionalmente defendidos apelando-se para a existência de Deus ou de um agente divino. Como outros filósofos do direito natural recentes, Murray Rothbard rejeitou a ideia de basear o direito natural na existência de Deus ou em justificações teológicas, mas deixa aberta a questão da existência de Deus:

“A tradição tomista… (sc. vindica) uma filosofia independente da teologia e proclama a capacidade da razão humana de compreender e alcançar as leis da ordem natural, sejam físicas ou éticas. Se a convicção em uma ordem sistemática de leis naturais sujeitas a ser descoberta pela razão humana é antirreligiosa per se, então São Tomás e os últimos escolásticos também eram antirreligiosos, assim como o jurista Hugo Grotius, devoto protestante. A declaração de que existe uma ordem de lei natural, resumidamente, deixa em aberto a questão de se foi ou não Deus quem criou tal ordem; e a afirmação de que a razão humana tem capacidade para descobrir a ordem natural deixa em aberto a questão de esta razão ter ou não sido dada ao homem por Deus. A afirmação de uma ordem de leis naturais passível de descoberta pela razão não é, por si só, nem pró e nem antirreligiosa.”  Murray Rothbard, A Ética da Liberdade, p. 58

Nisso, Rothbard tenta encontrar uma justificação não-religiosa ou secular para os direitos naturais e a lei natural, uma justificação independente da existência de Deus.

De acordo com Rothbard, os direitos naturais e a lei natural são supostamente deduzidos da natureza essencial dos seres humanos. Rothbard apresenta seu argumento para os direitos naturais em Por Uma Nova Liberdade: O Manifesto Libertário:

“Voltemo-nos então à base de direitos naturais para o credo libertário, uma base que, de uma forma ou outra, foi adotada pela maioria dos libertários, no passado ou no presente. Os “direitos naturais” são a pedra fundamental de uma filosofia política que, por sua vez, está incrustada numa estrutura política superior, a da “lei natural”. A teoria da lei natural se apoia na constatação de que vivemos num mundo composto por mais de uma – na realidade, um número imenso – de entidades, e que cada entidade tem propriedades distintas e específicas, uma “natureza” distinta, que pode ser investigada pela razão do homem, por suas percepções sensoriais e por suas faculdades mentais. O cobre tem uma natureza distinta e se comporta de uma maneira distinta, e o mesmo ocorre com o ferro, o sal etc. A espécie humana, da mesma maneira, tem uma natureza específica, da mesma maneira que o mundo que a cerca e as maneiras como eles interagem. Resumindo de maneira excessiva, a atividade de cada entidade inorgânica e orgânica é determinada por sua própria natureza e pela natureza de outras entidades com a qual ela entra em contato. Mais especificamente, enquanto o comportamento das plantas e de pelo menos os animais mais inferiores é determinado por sua natureza biológica, ou talvez pelos seus “instintos”, a natureza do homem é tal que cada indivíduo deve, ao agir, escolher seus próprios fins e utilizar-se de seus próprios meios para atingi-los. Como não possui instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o mundo, utilizar sua mente para escolher valores, aprender sobre causa e consequência, e agir de uma maneira intencional para se manter e levar sua vida adiante. Como os homens podem pensar, sentir, avaliar e agir apenas como indivíduos, torna-se vitalmente necessário para a sobrevivência e a prosperidade de cada homem que ele tenha a liberdade de aprender, escolher e desenvolver suas faculdades, e aja a partir de seu conhecimento e seus valores. Este é o caminho necessário da natureza humana; interferir com este processo e danificá-lo através do uso da violência vai profundamente contra o que é necessário, na própria natureza humana, para a sua vida e prosperidade. A interferência violenta no aprendizado e nas escolhas de um homem é, portanto, profundamente “anti-humana”; ela viola a lei natural das necessidades do homem.” Murray Rothbard, O Manifesto Libertário, p. 41-42

Contra isso, podem ser levantados certos pontos, como se segue:

(1) Não é nem um pouco claro que “como os homens podem pensar, sentir, avaliar e agir apenas como indivíduos, torna-se vitalmente necessário para a sobrevivência e a prosperidade de cada homem que ele tenha a liberdade de aprender, escolher e desenvolver suas faculdades, e aja a partir de seu conhecimento e seus valores.”

Praticamente todos os seres humanos começam a vida como crianças sujeitas à coerção dos pais, que escolhem instruir suas crianças com seus conhecimentos e valores. Crianças podem sobreviver e florescer enquanto são sujeitas a um grande número de regras e restrições parentais. Por exemplo, se alguém cresce católico, ele não deu seu consentimento como uma criança para crescer com religião e valores católicos: a escolha foi feita pelos pais, mas alguém pode muito bem se tornar um ser humano moral, próspero e bem-sucedido mesmo com aquela coerção parental em conhecimento e valores.

Existem até mesmo adultos que preferem deixar os outros escolherem seus fins. Certas pessoas mentalmente debilitadas podem sobreviver e até florescer, mesmo que elas estejam sujeitos a um controle estrito por seus cuidadores.

(2) Rothbard está errado em dizer que os homens possuem “nenhum instinto automático”

Rothbard faz uma forte alegação:

“Como não possui instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o mundo, utilizar sua mente para escolher valores, aprender sobre causa e consequência, e agir de uma maneira intencional para se manter e levar sua vida adiante.”

O quê? Seres humanos possuem sim instintos automáticos: fome, sede, e um vasto campo de traços comportamentais determinados. Para dar um exemplo: as crianças humanas possuem uma predisposição genética para adquirir linguagem de forma tão natural quanto as penas de uma ave crescem.

(3) Rothbard cai no problema do “ser/dever-ser” de David Hume

A passagem central onde Rothbard tenta deduzir um direito natural dos seres humanos de serem livres de violência e coerção é aqui:

“… a natureza do homem é tal que cada indivíduo deve, ao agir, escolher seus próprios fins e utilizar-se de seus próprios meios para atingi-los. Como não possui instintos automáticos, cada homem deve aprender sobre si mesmo e sobre o mundo, utilizar sua mente para escolher valores, aprender sobre causa e consequência, e agir de uma maneira intencional para se manter e levar sua vida adiante. Como os homens podem pensar, sentir, avaliar e agir apenas como indivíduos, torna-se vitalmente necessário para a sobrevivência e a prosperidade de cada homem que ele tenha a liberdade de aprender, escolher e desenvolver suas faculdades, e aja a partir de seu conhecimento e seus valores. Este é o caminho necessário da natureza humana; interferir com este processo e danificá-lo através do uso da violência vai profundamente contra o que é necessário, na própria natureza humana, para a sua vida e prosperidade. A interferência violenta no aprendizado e nas escolhas de um homem é, portanto, profundamente “anti-humana”; ela viola a lei natural das necessidades do homem.”

Isso é matéria do problema do “ser/dever-ser” de Hume. Como é possível derivar uma proposição normativa ou prescritiva (“A interferência violenta no aprendizado e nas escolhas de um homem é, portanto, profundamente ‘anti-humana’”) de proposições meramente descritivas?

Para ver o quão inconvincente é esse argumento, precisamos fazer apenas algumas mudanças para ver o absurdo que é:

“… a natureza da folha, sob a influência da gravidade, é cair no chão, tal que cada folha deve, para cair, ser livre de obstruções e interferências quando ela se separa da árvore. Como não possui instintos automáticos, cada folha deve ser sujeita à gravidade e cair no chão; interferir com este processo e danificá-lo, usando interferência para impedir que a folha caia no chão vai profundamente contra a natureza da folha. Interferência violenta contra a natureza da folha é, portanto, profundamente ‘anti-folha’; ela viola o direito natural da folha de agir naturalmente.”

Apenas por que a natureza da folha é cair no chão sob a influência da gravidade, não se segue que a folha tem um direito moral qualquer de cair no chão.

(4) O argumento de Rothbard para o “direito de auto-propriedade” é falho

“O método mais viável de se elaborar uma declaração de direitos naturais da posição libertária é dividi-la em partes, começando com o axioma básico do “direito à autopropriedade”. O direito à autopropriedade assegura o direito absoluto de cada homem, devido a ele (ou ela) ser um ser humano, de ter a “propriedade” de seu próprio corpo; isto é, controlar este corpo livre de qualquer interferência coercitiva. Uma vez que cada indivíduo deve pensar, aprender, dar valor e escolher os seus fins e meios de um modo que lhe permita sobreviver e florescer, o direito à autopropriedade dá ao homem o direito de executar estas atividades vitais sem ser impedido ou restringido pelo assédio coercitivo.

Consideremos, também, as consequências de se negar a todos os homens o direito de ter a propriedade de sua própria pessoa. Existem então apenas duas alternativas; ou (1) uma certa categoria de pessoas, A, tem o direito de ter a propriedade sobre outra classe, B; ou (2) todos têm o direito de possuir sua própria fração de propriedade sobre todos os outros indivíduos. A primeira alternativa implica que enquanto a Classe A merece o direito de ser humana, a Classe B é, na realidade, sub-humana e, como tal, não merece estes direitos. Porém como eles de fato são seres humanos, a primeira alternativa se contradiz ao negar direitos humanos a um conjunto de humanos. Além do mais, como veremos, permitir que a Classe A tenha posse sobre a Classe B significa que a primeira tem a permissão de explorá-la, e, portanto, viver de maneira parasítica, à custa da segunda. Este próprio parasitismo, no entanto, viola as necessidades econômicas básicas da vida: produção e trocas.” Murray Rothbard, O Manifesto Libertário, p. 42-43

A alegação de Rothbard de que existem apenas “duas alternativas” para negar a cada homem o direito de possuir a si próprio se manifesta falsa, como exposto por Edward Feser (Rothbard as a Philosopher).

Na realidade, existem um bom número de alternativas que Rothbard não considera, como Feser nota:

(1) Nenhum homem possui a si mesmo;
(2) Um deus criador possui todos os seres humanos;
(3) Um grupo de seres humanos pode ter um direito à apropriação parcial de outro grupo;
(4) Todos os seres humanos possuem uma propriedade parcial e/ou desigual de todos os outros.

Texto retirado e traduzido daqui.

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